DAVIES, NORMAN




NORMAN DAVIES
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Historiador, professor emérito da Universidade de Londres.





LIVRO ESCOLHIDO - EDITORA RECORD

EUROPA NA GUERRA 1939/1945: UMA VITÓRIA NADA SIMPLES


Davies produziu uma narrativa extraordinariamente lúcida, que foge ao convencional, reorganizando fatos bem estabelecidos que até agora vinham sendo rigidamente segregados. Hoje não resta dúvida de que o regime stalinista montou uma máquina de assassinatos em massa e que a proeminência do seu papel na derrota do Terceiro Reich exige grandes ajustes na narrativa convencional. Incorporando todas essas pesquisas, Davies oferece ainda ao leitor uma perspectiva detalhada de como a guerra vem sendo retratada em filmes, arte e literatura e como tal perspectiva afeta a percepção pública do conflito. Mas o melhor do livro é que Davies não se limita ao confortável papel de apenas desconstruir a narrativa convencional.O historiador se arrisca a recontar a história da guerra com base nas novas perspectivas e nas novas pesquisas, que não se revelam nada agradáveis à autocomplacência que predomina nos relatos tradicionais. Se você ensina às crianças que a guerra começou em 1941, elas tendem a imaginar que os Estados Unidos eram todo-poderosos desde o início. E não é difícil fazê-las acreditar que a omissão americana em desafiar Stalin deva ser creditada a fatores pessoais ou a um saudável “isolacionismo”. Mas não foi o caso. Davies argumenta que as forças americanas não tinham nenhuma paridade com a URSS até o início do ano de 1945, que o Exército Vermelho obteve as maiores vitórias contra a Alemanha nazista e que foi o comunismo soviético, não a democracia liberal, a fazer os maiores avanços. Outros dos grandes equívocos que a memória da guerra congelou foi designá-la como “guerra antifascista”. Neste ponto Davies recorre à cronologia. Houve um breve interlúdio, entre 1939 e 1941, no qual o movimento antifascista não foi universalmente aclamado pelo embaraçoso constrangimento provocado pela associação entre Stalin e Hitler. Somente com a invasão da Rússia pelos alemães o mundo retornou aos confortáveis trilhos maniqueístas e o antifascismo voltou à moda com tudo, mostrando-se particularmente apropriado à perspectiva americana, que precisava desesperadamente de uma “cruzada moral contra o Mal”. A partir daí, Stalin começou a posar tranquilamente como o benevolente “tio Joe”. Lembre-se de que este foi o clima reinante na coalizão dos “três grandes” no período da guerra e que este constituiu o espírito no qual os primeiros relatos de guerra se viram escritos. A memória não congela a narrativa valendo-se apenas de distorções, mas também de ausências e silêncios. Apoiado em dados sólidos, por isto mesmo estarrecedores, Davies mostra que as maiores instalações do Gulag soviético, os gigantescos campos de Kolima ou de Vorkuta, facilmente ultrapassavam em tamanho os maiores campos de concentração das SS, em Auschwitz ou Majdanek. O sistema soviético parece não ter tido nenhum equivalente às “fábricas nazistas exclusivas da morte”, como Treblinka, Sobibór ou Belzec. De qualquer forma, é de lamentar que Auschwitz, e não Treblinka, tenha sido escolhido como o local emblemático de lembrança do Holocausto. É um paradoxo que os libertadores de Auschwitz, os soldados do Exército Vermelho, fossem servos de um regime que tinha campos de concentração ainda maiores do que aquele que resgataram. Os historiadores têm de pelejar contra um fenômeno que Pierre Nora chamou de “lugares de memória”, ou seja, locais e monumentos históricos que exercem um apelo tão forte às pessoas que excluem ou minimizam todos os demais. Os massacres nas florestas de Katyn não foram nem de longe uma das maiores atrocidades da Segunda Guerra, mas a história posterior de sua vergonhosa ocultação serve como um teste decisivo de honestidade histórica. Cerca de 4,5 mil cadáveres de oficiais aliados (em sua maioria, poloneses) haviam sido descobertos pelos alemães em 1943. Havia provas circunstanciais de que o assassinato coletivo fora cometido pelos russos, mas todos atribuíram a culpa aos alemães. Os governos ocidentais recusaram-se a mencionar o assunto, exceto para apontar o dedo na direção dos nazistas, e o mundo foi mantido no escuro por 50 anos. Somente em 1990 Mikhail Gorbachev admitiu a culpa dos soviéticos e Boris Yeltsin, alguns anos depois, apresentou a prova, uma ordem de execução, assinada por Stalin, em março de 1940. Mas, até hoje, Katyn não foi enquadrado, nem pelas potências ocidentais, na categoria dos “crimes de guerra”, já que tal designação é usada apenas para referir-se aos crimes dos “inimigos”. A história é sujeita a malversações e congelamentos da memória, e a Segunda Guerra, que em grande medida criou o mundo atual, apresenta tentações especiais. Se é difícil para o indivíduo reconciliar-se com a própria memória, pode-se supor longo e doloroso o caminho das sociedades para descongelar o passado. Livros como o de Norman Davies mostram que a verdade histórica, ainda que relativa, pode ser um atalho libertador.