SCHNITZLER, ARTHUR



ARTHUR SCHNITZLER



Arthur Schnitzler nasceu em 1862, em Viena (Áustria), filho de um famoso médico. Cresce em um ambiente em que se cultivava poesia, pintura e literatura; seu pai recebia em casa importantes personagens da cidade. Começa a carreira literária aos 18 anos, com a publicação de A Canção de Amor da Bailarina. Forma-se em medicina, em 1885, pela Universidade de Viena. Nos três anos seguintes foi assistente de um cirurgião. Interessa-se pelo estudo da psiquiatria, participando de congressos científicos em vários países. Exerce a profissão até 1894, quando decide dedicar-se à literatura. Como escritor, fica conhecido com a publicação de Anatol (1893) e Ronda (1897), peças de teatro que descrevem a atmosfera de erotismo e melancolia da Viena do fim-de-século - e causaram escândalo quando encenadas. Como escritor e também como psicólogo, Schnitzler antecipou idéias do criador da psicanálise, Sigmund Freud. O Caminho Solitário (1908) trata do anti-semitismo da época, mesmo tema de sua tragédia Professor Bernhardt (1912). Autor de muitos outros livros, entre os quais O Retorno de Casanova (1918), Senhorita Else (1924) e Breve Romance de Sonho (1926), Arthur Schnitzler morreu em Viena, em 1931.

LIVRO ESCOLHIDO - EDITORA RECORD

CRÔNICA DE UMA VIDA DE MULHER (1928)
(Por Noemi Moritz Kon)
Numa carta datada de 14 de maio de 1922, Sigmund Freud faz — segundo suas próprias palavras — uma “confissão”. Já consagrado como criador da psicanálise e dizendo-se próximo do “fim da vida”, o médico vienense afirma ao destinatário que por muitos anos o havia evitado, pois o tomava, com admiração e temor, como seu “duplo”. Alguém que, como ele, era “um explorador das profundezas”, que apreendia as “verdades do inconsciente” e desmontava “as convenções sociais”. “Sempre que me deixo absorver profundamente por suas belas criações”, escreve Freud ao seu interlocutor, “parece-me encontrar, sob a superfície poética, as mesmas suposições antecipadas, os interesses e conclusões que reconheço como meus próprios.” E concluía: “Ficou-me a impressão de que o senhor sabe por intuição — realmente, a partir de uma fina auto-observação — tudo que tenho descoberto em outras pessoas por meio de laborioso trabalho”.Quem poderia ser esse a quem Freud se ligava por “uma estranha familiaridade”, alguém a quem se equiparava no trabalho monumental de construir a psicanálise e na escuta do discurso das mulheres e da histeria? Um discurso que, sistematizado em sua obra, estabeleceu o papel decisivo do desejo sexual nas ações humanas e permitiu a irrupção no pensamento ocidental das idéias de inconsciente e do homem dividido, cruciais para as décadas que viriam. O “duplo” assim declarado por Freud chamava-se Arthur Schnitzler (1862-1931). Conhecido como doctor poe­ta, o dramaturgo, contista, ensaí­s­ta, novelista e romancista foi um dos poucos escritores da Viena fin-de-siècle que adquiriu importância duradoura. Neste mês, sai no Brasil — pela primeira vez — o romance Crônica de uma Vida de Mulher, um dos livros de Schnitzler que mostram a proximidade de seus temas com os de Freud.Em parte, essa proximidade pode ser explicada pela origem de ambos — os dois eram judeus destacados da burguesia da Viena da virada de século, centro do Império Austro-Húngaro, cuja prosperidade e vigor cultural marcariam profundamente o pensamento ocidental nas décadas subseqüentes. Enquanto Freud era filho do pequeno comerciante Jacob Freud, Schnitzler provinha de uma família de médicos da alta burguesia liberal. Seu pai, Johann Schnitzler, era reconhecido por seu trabalho em consultório particular, como editor do Jornal Médico de Viena e por seu cargo de direção na Policlínica da cidade. Nesse meio, Schnitzler cresce entre apreciadores das artes e gente do teatro, recebendo sólida instrução em música e línguas estrangeiras. Precoce, aos 18 anos já tem 23 dramas acabados e 13 iniciados.
“NÃO SE PODE SER PLENO POETA E PLENO MÉDICO AO MESMO TEMPO” (Schnitzler, numa anotação no diário, em 1880)
Apesar de suas reconhecidas qualidades artísticas, Schnitzler cede à pressão paterna e se decide pela profissão de médico. Um ano depois de começar os estudos, em 15 de maio de 1880, descre­ve em seu diário o dilema que vive: “Posso medi­tar o quanto quiser sobre a íntima ligação entre medicina e poesia, e, não obstante, permanece verdade que não se pode ser pleno poeta e pleno médico ao mesmo tempo. Jogado para lá e para cá entre ciência e arte, não entrego meu pleno eu a nenhuma das duas e me atrapalho pela poesia no trabalho e pelo trabalho na poesia”. Ainda assim, Schnitzler mantém as tradições familiares. Recebe seu título de doutor, especializa-se em laringologia e, em 1886, faz seu estágio médico — como Freud — na clínica de Theodor Meynert, renomado psiquiatra que trabalha experimentalmente com as técnicas de hipnose e sugestão.
Freud e Schnitzler poderiam ter seguido a mesma carreira. Ironicamente, o mesmo evento — a morte de seus pais — os levou a caminhos opostos. Com a morte de Johann, em 1893, Schnitzler se afastou da medicina para tomar em definitivo o caminho da literatura; já a morte de Jacob, em 1896, foi a oportunidade para que Freud criasse sua grande obra, A Interpretação dos Sonhos (1900). Nela, foram construídos, a despeito do repúdio da intelligentsia médica e de uma sociedade de inclinações anti-semitas, os alicerces de sua nova ciência: um aparelho psíquico inédito e com dinâmica própria, no qual surgiam figuras conceituais tais como o inconsciente, o recalque e a sexualidade infantil.
Cada um a seu modo, os dois denunciaram a hipocrisia de sua sociedade, a falsa harmonia de um império, o Austro-Húngaro, assolado por diferenças sociais e nacionais — tensões que resultariam, no fim da Primeira Guerra Mundial, na desintegração do país. Para ambos, a espessura do social é diminuta ante a força dos impulsos sexuais e do determinismo psíquico calcado na polaridade amor e morte. O jogo político é neutralizado, sendo reduzido a categorias psicológicas. Tanto na obra de Freud como na de Schnitzler, o tom é de ceticismo. Ceticismo com relação a uma sociedade que se desarranja e busca escamotear sua face real. Ceticismo quanto às capacidades humanas de dar conta de seus problemas pela via da razão e da moral.Assim como a de Freud, também a obra de Schnitzler provoca escândalo. Pois, à diferença da maior parte da literatura austríaca da época, que ressaltava a suposta harmonia do império comandado pela dinastia dos Habsburgo, Schnitzler evidencia e combate a hipocrisia da sociedade decadente. É contra o mito habsbúrgico que se manifesta Schnitzler — mito que, como diz o crítico italiano Claudio Magris, “não é um simples processo de transfiguração do real, próprio de toda atividade poética, mas é a completa substituição de uma realidade histórico-social por uma outra fictícia e ilusória, é a sublimação de uma sociedade concreta por um pitoresco, seguro e ordenado mundo de fábula”.Schnitzler abordará, em suas obras, homens e mulheres em situações de desespero pela ruína financeira ou familiar, pelo jogo, pelo endividamento ou, ainda, pelo incesto, adultério e abandono, mas que ainda assim se mantêm fiéis aos códigos consagrados de aparência social. Exibe com crueza os desejos e a repressão na mulher e as relações de fachada dos “bons casamentos”. Evidencia também a hipocrisia dos princípios religiosos e expõe os sentimentos anti-semitas da sociedade vienense.
“AMBOS, O POETA E o PSICANALISTA,OLHAMOS ATRAVÉS DA JANELA DA ALMA”(Schnitzler, numa entrevista em 1927)
Com Freud, Schnitzler compartilhará a idéia de que a verdadeira motivação humana são os desejos se­xuais, desejos capazes de destruir todas as barreiras sociais e morais. É assim com sua Senhorita Else (1924), que, por meio de um monólogo interior, denuncia ter sido oferecida a um lascivo barão como pagamento das dívidas de jogo do próprio pai. Ou, ainda, com o belo e próspero casal de Breve Romance de Sonho (1926), que tem sua vida totalmente transformada no momento em que Albertine expõe para o dr. Fridolin seus desejos eróticos. A história foi adaptada com sucesso para o cinema por Stanley Kubrick em De Olhos bem Fechados (1999). Em Crônica de uma Vida de Mulher (1928), Schnitzler se detém de maneira amarga na vida de desventuras de Therese Fabiani. Após a derrocada da família, motivada pela loucura do pai, ela enfrentará a sociedade corrompida e decadente da Viena daquele período. Desorientada — no sentido de ser desprovida de um norte moral —, ela pula de emprego em emprego, buscando sua redenção em um casamento que não se concretiza. Em uma ocasião, engravida de galanteador pobre. Anos mais tarde, ela será morta pelo próprio filho, um ilegítimo como muitos daquele tempo.“Schnitzler”, escreve o estudioso austríaco Wolfgang Bader, “sempre atravessa os limites do que é meramente agradável e do tabu moral, indo em direção à verdade não expressa. O que irritava a mentalidade do público não era o fato de aquilo ser verdadeiro, mas tão-só ter sido mostrado e, com isso, ter acabado com o consenso da bela ilusão sobre o qual a sociedade fundava sua coesão.”A proximidade com a psicanálise se dá também no nível formal. Em 1901, em O Tenente Gustl, Schnitzler introduz o fluxo de consciência na narrativa de língua alemã, o que, na visão do crítico tcheco J. P. Stern, seria “o correspondente do mé­todo psicanalítico” na literatura germânica. Mas, mesmo nesse texto que poderia traduzir prioritariamente uma crítica contundente às instituições sociais, Schnitzler se atém aos conflitos internos da personagem, dando assim a entender que, de seu ponto de vista, o social parece ter pouca importância diante da intensidade dos conflitos internos.Esse percurso foi acompanhado à distância por Freud. Ao longo de suas trajetórias, os dois médicos — o cientista e o poeta — pouco tiveram contato. À “confissão” feita por Freud seguiram apenas alguns breves encontros. No mais, instalou-se o silêncio, apenas adornado por alguns bilhetes, cartões de visita e troca de cumprimentos. Na referida carta de 1922 a Schnitzler, Freud se recrimina, pois “durante todos esses anos nunca procurei sua companhia e usufruí uma conversa com o senhor”. Freud acreditava, de fato, que o escritor havia se aproximado por demais do universo próprio à psicanálise, mas por meios muito diversos. E isso o incomodava. Compreende-se, então, que o receio de uma maior intimidade com o poeta por parte do médico denuncia a profunda ambigüidade, marcada pela sedução e também pelo terror, que o liga à fantasia, à imaginação, suporte maior da criação artística.Em Estudos sobre a Histeria (1893-1895), Freud escreve com certo desconforto: “A mim causa singular impressão comprovar que minhas histórias clínicas carecem, por assim dizer, do severo selo da ciência, e que apresentam mais um caráter literário. Mas consolo-me pensando que este resultado depende inteiramente da natureza do objeto, e não de minhas preferências pessoais. O diagnóstico local e as reações elétricas não têm eficácia alguma na histeria, enquanto uma exposição detalhada dos processos psíquicos, tal como estamos habituados a encontrar na literatura, me permite chegar, por meio de um número limitado de fórmulas psicológicas, a um certo conhecimento da origem de uma histeria”.Assim, da parte de Freud, assumir diante de um outro a estranha familiaridade que o uniria a seu duplo-Schnitzler traduz um intenso trabalho de superação da resistência diante da percepção da atividade da fantasia em sua própria disciplina. Freud preferiria abrigar-se sob o severo selo da ciência, distanciando-se do solo incerto sobre o qual habita o criador. Já Schnitzler parece ter superado seu dilema juvenil, assumindo sem medo a via artística. Em uma entrevista, em 1927, o escritor austríaco faz uma alusão à carta de Freud transcrita acima: “Por algum aspecto eu me constituo no ‘duplo’ do professor Freud. Ele me definiu certa vez como seu gêmeo psíquico. Na literatura percorro a mesma estrada sobre a qual Freud avança com uma temeridade surpreendente na ciência. Entretanto, ambos, o poe­ta e o psicanalista, olhamos através da janela da alma”.