CARPEAUX, OTTO MARIA

OTTO MARIA CARPEAUX



Otto Maria Carpeaux (Otto Karpfen, de nascimento), filho de pai judeu e mãe católica, nasceu em Viena (Áustria), em 9 de Março de 1900, onde cursou o ginasial. Ingressou na faculdade de direito, por sugestão familiar, abandonando-a um ano depois. Estudou filosofia (doutorou-se em 1925), matemática (em Leipzig), sociologia (em Paris), literatura comparada (em Nápoles) e política (em Berlim); além de dedicar-se à música.
Em
1930 casou-se com Helena Carpeaux.
Dedica-se intensamente à
literatura e ao jornalismo político. Converte-se à religião católica e torna-se homem de confiança de dois primeiros-ministros em Berlim, Engelbert Dollfuss e Kurt Schuschnigg, os últimos primeiro-ministros antes do Reich Alemão, respectivamente, o que o obrigando a seguir para o exílio. Em princípios de 1938 foge com a mulher para Antuérpia (Bélgica), onde ainda trabalha como jornalista na Gaset Van Antwerpen, maior jornal belga de língua holandesa.No Brasil
Diante da escalada
nazista, Carpeaux ainda sente-se inseguro e foge com a mulher, em fins de 1939, para o Brasil. Durante a viagem de navio, estoura a guerra na Europa. Recusando qualquer conciliação com o que estava acontecendo no Reich, muda seu sobrenome germânico Karpfen para o francês Carpeaux.
Ao desembarcar, nada conhecia da
literatura brasileira, nada sabia do idioma e não tinha conhecidos. Na condição de imigrante, foi enviado para uma fazenda no Paraná, designado para o trabalho no campo.
O cosmopolita e erudito Carpeaux ruma para
São Paulo. Incialmente passa dificuldades, sem trabalho, sobrevive à custa de desfeitas de seus próprios pertences, inclusive livros e obras de arte. Autodidata, o homem que já sabia inglês, francês, italiano, alemão, espanhol, flamengo, catalão, galego, provençal, latim e servo-croata, em um ano aprende e domina o português.
Em
1940, tenta ingressar no jornalismo nacional, mas não consegue. É então que escreve uma carta a Álvaro Lins, a respeito de um artigo sobre Eça de Queiroz. A resposta é feita em forma de um convite, em 1941, para escrever um artigo literário para o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro. Seu artigo é publicado e um emprego é garantido. Iniciava uma publicação regular. Até 1942, Carpeaux escrevia os artigos em francês, que eram traduzidos.
Mostrando sua grande inteligência e erudição, divulgou autores estrangeiros e tornou-se um grande crítico literário. Nesse mesmo ano de
1942, Otto Maria Carpeaux naturalizou-se brasileiro. Ainda nesse ano, publica o livro de ensaios Cinzas do Purgatório.
Entre
1942 e 1944 Carpeaux foi diretor da Biblioteca da Faculdade Nacional de Filosofia. Em 1943, publica Origens e Fins.
De
1944 a 1949 foi diretor da Biblioteca da Fundação Getúlio Vargas. Em 1947 publica sua monumental História da Literatura Ocidental - o mais importante livro do gênero em língua portuguesa. Em 1950, torna-se redator-editor do Correio da Manhã. Em 1951, publica Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira, obra singular na literatura nacional - reunindo, em ordem cronológica, mais de 170 autores de acordo às suas correntes, da literatura colonial até nossos dias. Sua produção crítica literária é intensa, escrevendo em jornais semanalmente.
Em
1953, publica Respostas e Perguntas e Retratos e Leituras. Em 1958, publica Presenças, e em 1960, Livros na Mesa.
Carpeaux foi forte opositor do
Golpe Militar, em 1964, redigindo artigos acerca da retrógrada autoridade da então nova ordem miltiar, participando de debates e eventos políticos.
Em
3 de fevereiro de 1978, sexta-feira de Carnaval, morre no Rio de Janeiro, de ataque cardíaco.


LIVRO ESCOLHIDO - EDIÇÕES DO SENADO FEDERAL


HISTÓRIA DA LITERATURA OCIDENTAL - 4 VOLUMES


Essa extensa obra aborda a herança da literatura grega, o mundo romano, o cristianismo, a fundação da Europa, o universalismo cristão, a literatura dos castelos e aldeias, a oposição burguesa e eclesiástica, a transição do Trecento, a Renascença e Reforma no Quatrocento e Cinquecento, o Barroco e Classicismo, o Rococó e a revolução pré-romântica, o Romantismo, a literatura burguesa do Realismo ao Naturalismo, o Fin de Siécle do Simbolismo até as revoltas modernistas e as tendências contemporâneas.
HÉLIO PELLEGRINO(05/01/1924 – 23/03/1988)




Permito-me, ao invés de uma pequena biografia, reproduzir matéria publicada na revista Teoria e Debate, n.3, de junho de 1988.

Memória: Hélio Pellegrino – Um homem e seu pensamento.

(por Maria Rita Kehl e Humberto Werneck*)

 
Uma semana antes de sua morte (causada pelo terceiro infarto, em março passado), Hélio Pellegrino escrevia mais um artigo para o Jornal do Brasil (16/3/88) narrando o tortuoso episódio que culminou com a cassação do registro do Dr. Amílcar Lobo pelo CRM (Conselho Regional de Medicina) devido à sua participação e conivência, como médico militar, na tortura política dos anos 70 — inclusive no episódio da morte do ex-deputado Rubens Paiva. O envolvimento político do psicanalista Hélio Pellegrino no processo de denúncia e esclarecimento da participação de Lobo na tortura (com a cumplicidade do analista-didata deste, Dr. Leão Cabernite) valeu-lhe a expulsão da SPRJ (Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro), em 1980, junto com seu colega Eduardo Mascarenhas.
Pudera. Escrevendo, discutindo e analisando a relação entre a instituição psicanalítica, o poder, a tortura e os direitos humanos; diferenciando com clareza os pudores corporativistas que protegem as castas médicas dos verdadeiros e rigorosos princípios éticos que fundam e legitimam a prática da psicanálise, Hélio Pellegrino corajosamente arrancou o véu de formalidade e silêncio que protegia e poupava os membros das sociedades psicanalíticas de se defrontarem, como seres humanos e políticos, com os acontecimentos de seu tempo. A atuação de Hélio, seus artigos e reflexões sobre a verdadeira ética da psicanálise sacudiram a poeira de todos os consultórios brasileiros, tiraram os divãs de um limbo atemporal em que se tratava o inconsciente como pura idéia imaterial e desvinculada da história, para nos situar (como quis Freud, há cem anos) num lugar absolutamente humano, envolvido com matéria carnal e social, tendo o amor como maior recurso e a liberdade como objetivo. Para Hélio, "liberdade é ação, é coisa encarnada, inserida no real com objetivo de transformá-lo, modelando-o (...) Não há liberdade abstrata, nobre princípio apenas retórico, a ser festejado e exaltado em cerimônias patrióticas. A liberdade é centro da condição humana. Não se concebe analista como o Dr. Cabernite, que, em nome de uma pretensa neutralidade, não se empenhe de corpo e alma em analisar e curar seu cliente da psicopatologia que fez dele um homem envolvido na tortura de outros homens; assim como não se concebe médico como o Dr. Lobo, que assistia cidadãos torturados, alguns até a morte, sem denunciar o sadismo institucionalizado que os estava vitimando. Se os Dr. Lobo e Cabernite correriam riscos? São riscos da profissão, de quem se envolve com matéria humana, emocional, obscura às vezes, perigosa sempre. Se não queriam riscos, deveriam ter ficado na botânica, na veterinária ... "O psicanalista é o contrário do burocrata ou do especialista. Ele escuta o desejo, debruçado sobre o coração selvagem da vida e, a partir desse pólo, se esgalha, ampliadamente, em todas as direções (...) Você é um centro pessoal de transformação do mundo. Só sua prática nesse sentido é que dirá a você o que fazer e o que mudar, inclusive na sua vida e na própria profissão.Assim viveu Hélio Pellegrino: esgalhando-se, ampliadamente, em todas as direções, acertando e errando, pagando alto preço de sua ousadia em fazer da própria vida um exercício de liberdade. Embora não compartilhe de sua fé religiosa, reconheço na atuação analítica, política e também poética de Hélio Pellegrino uma espécie de vínculo permanente com o aspecto sagrado da vida, esta única chance que nos é dada de participar da comunidade humana e do cosmo, e com a qual temos um único compromisso: o de não fazê-la pequena, mesquinha, covarde. Não desperdiçar a vida, não desperdiçar o manancial de amor que existe em cada um de nós.
Hélio Pellegrino morreu do coração no dia em que o governo Sarney derrotava por meio de uma Constituinte majoritariamente corrompida, mais uma esperança de eleições diretas, agora em 1988. Depois do duro impacto que foi a notícia de sua morte repentina, depois de algumas horas parada diante do vazio que sempre nos deixa o desaparecimento de uma pessoa querida e admirada, compreendi que só morre do coração quem tem coração. A coletânea que se segue, de trechos de seu pensamento sobre vários assuntos, não pretende dar conta da complexidade e da amplitude do personagem Hélio — ela é só uma pequena amostra dos caminhos que ele percorreu e desbravou com lucidez e coragem; com a inteligência e o coração.
(*Maria Rita Kehl é psicanalista e escritora.)
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A 23 de março passado, quando um infarto matou Hélio Pellegrino, no Rio de Janeiro, não foram poucas as tentativas de capturar com palavras a sua figura múltipla. "Ele foi o poeta da psicanálise", escreveu o repórter José Castello, no Jornal do Brasil. "Um inacreditável homem-e-meio", disse o advogado e professor de direito Nilo Batista. "O melhor exemplo do homem sem medo", observou o jornalista e escritor Cícero Sandroni. "Ninguém como ele sabia falar e escrever a palavra mais certa para abalar a iniqüidade e despertar o sentimento fraterno", declarou o ensaísta e professor Antonio Candido, que concluiu: "Foi luminoso e é insubstituível". A definição mais exata de Hélio Pellegrino, no entanto, talvez tenha sido dada por ele próprio, num artigo que dedicou à memória do indigenista Noel Nutels, quando de sua morte, em 1973. Era um homem desatado, verdadeiro, caloroso", anotou Hélio, como se falasse de si mesmo. "Sua capacidade de aceitar o Outro fazia com que este se sentisse, irresistivelmente, convidado para a festa do diálogo, da amizade, da comunicação."Festa que este poeta, psicanalista, escritor e ativista político, mineiro de Belo Horizonte, animou como ninguém em seus 64 anos de vida. Raras pessoas terão sabido, como ele, combinar ação e pensamento. Dono de uma capacidade verbal assombrosa, batalhou por meio de ensaios, palestras, debates, conferências e artigos na imprensa. Mas não ficou sendo um intelectual de gabinete: levou seu verbo também para as praças, ruas, palestras, e por causa dele amargou três meses de prisão sob o AI-5, em 1969. Psiquiatra e, mais tarde, psicanalista, concebia seu ofício como um instrumento de libertação — mas não se limitou a exorcizar os fantasmas que rondam os divãs: combateu igualmente os vícios e monstruosidades que, aos poucos, se vão grudando no casco da instituição psicanalítica.
No caso da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), de que foi membro, Hélio Pellegrino denunciou não apenas o poder imperial dos burocratas que a comandavam como também o acobertamento, por esses dirigentes, de um associado, Amílcar Lobo, que colaborara com a tortura a prisioneiros políticos no início dos anos 70. A denúncia lhe custou a expulsão da SPRJ, à qual só conseguiu retornar pela via judicial. Pouco antes de morrer, colheu um vitória quando o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro cassou o registro de Amílcar Lobo, impedindo-o de exercer a profissão. "Pela primeira vez desde 1964", observou Hélio num artigo; "alguém é punido por ter-se envolvido, na condição de militar, com a tortura política".Apaixonado pela justiça, ele carregava em seu final de vida um sonho obsessivo: ver reaberto o caso Riocentro. Uma semana antes de sua morte, o Superior Tribunal Militar decidiu pelo arquivamento do inquérito aberto para apurar esse atentado terrorista com que a extrema-direita, no dia 30 de abril de 1981, pretendeu semear o pânico e a morte entre as 30 mil pessoas que assistiam a um show de música promovido por organizações democráticas. O inquérito policial-militar, como se previa, não avançou um milímetro na direção da verdade.Hélio Pellegrino nunca se conformou com isso. No último parágrafo de seu último artigo, publicado postumamente, citava o ministro do Exército, general Leônidas Gonçalves, que a propósito de outro episódio falara em "honra militar". "Em nome dela é que o IPM do Riocentro deveria ter sido reaberto", argumentou Hélio. O escritor Otto Lara Resende, seu amigo, conta que ele andava siderado pelo conceito de honra e lia muito sobre o tema — mergulhara, com especial interesse, nos textos do escritor católico francês Georges Bernanos. "Estava se preparando para escrever um longo artigo sobre o Riocentro", revela Otto Lara Resende, lembrando que Hélio morreu com outra frustração: horas antes do infarto fatal, já hospitalizado, viu a Constituinte aprovar a emenda que praticamente liquidou a esperança de eleições diretas para presidente este ano.
A morte poupou-o de mais um pesado golpe: internado no Instituto Brasileiro de Cardiologia, em Ipanema, não chegou a saber do melancólico fechamento da Clínica Social de Psicanálise, decidida em assembléia da entidade na noite de 22 de março. "A clínica morreu com ele", diz com amargura o psicanalista carioca João Batista Ferreira, que ajudou a pôr de pé essa utopia sonhada por Hélio Pellegrino. A idéia era colocar a psicanálise ao alcance das camadas mais pobres da população. "O operário só entra no meu consultório como bombeiro ou pintor de paredes, jamais como cliente", disse ele certa vez. "Só entra quem paga meu preço, e o preço é a nossa linha de partilha severa, o leão-de-chácara na porta do consultório, que tem a arrogância de barrar a imensa maioria do povo brasileiro. O preço é uma determinação do mercado, o ponto em que a psicanálise se articula com a política".
Como driblar esse nada manso leão-de-chácara? Hélio imaginou um banco de horas em que cada profissional ligado ao projeto depositaria duas horas de atendimento gratuito por semana. Os clientes pagariam quantias simbólicas pelos serviços, que consistiriam em terapia de grupo para adultos e adolescentes e ludo-terapia para crianças, além de orientação para os pais. Implantada em 1973, a Clínica Social de Psicanálise foi sendo lentamente sufocada por problemas financeiros, como a alta perpétua dos aluguéis. Resta o consolo de saber que não desapareceu sem deixar traços. "Foi uma fagulha irradiadora", avalia João Batista Ferreira. "Hoje, várias sociedades psicanalíticas têm suas clínicas sociais". Em 1981, ainda vicejante, a entidade, numa iniciativa sem precedentes, estendeu seu raio de ação até uma favela carioca, o Morro dos Cabritos. No tempo da ditadura, chamou a si a tarefa de dar cobertura a militantes políticos que precisavam deixar o país.
A clínica promoveu ainda fecundos simpósios sobre psicanálise. Um deles em particular, dedicado ao tema Psicanálise e Política, em setembro de 1980, teria importantes desdobramentos: foi nessa oportunidade que Hélio Pellegrino, ao lado de dois colegas, Eduardo Mascarenhas e Wilson Chebabi, abriu fogo contra os barões da instituição, denunciando seus privilégios, seu pretenso apolitismo e os altos custos do tratamento. Começava uma pequena revolução. "A história das instituições psicanalíticas brasileiras se divide em antes e depois de Hélio Pellegrino", demarca Eduardo Mascarenhas, para quem o colega morto, entre outros méritos, teve o de "tirar a psicanálise , de seus castelos mal-assombrados e transportá-la para o espaço público"."Incansável Dom Quixote a lutar contra dragões reais que nada tinham de moinhos de vento", como o descreveu Cícero Sandroni, Hélio Pellegrino já nasceu marcado por essa vocação. "Nas minhas lembranças mais remotas eu o vejo indignado com os absurdos do país", depõe o crítico de teatro Sábato Magaldi, seu primo e companheiro de infância em Belo Horizonte. "Ele tinha uma espécie de ira santa". Ira que, uma vez provocada, desconhecia barreiras e convenções. Certa madrugada — quem conta é outro amigo de juventude, o radiologista Eloy Heraldo Lima, seu colega de faculdade —, Hélio Pellegrino passava pela Praça da Estação, em Belo Horizonte, quando deparou com dezenas de famílias de indigentes dormindo ao relento. Indignado, buscou um telefone e interrompeu o sono do arcebispo da cidade, Dom Antônio dos Santos Cabral, para exigir — inutilmente — que ele, primeiro, fosse ver o triste espetáculo, e em seguida acolhesse aquela gente em seu palácio, afinal de contas "uma casa de Deus.
A história é contada no romance O Encontro Marcado, de Fernando Sabino, do qual um dos personagens principais, Mauro, não disfarça o perfil exuberante de Hélio Pellegrino. Este livro, que já vendeu mais de 50 edições desde 1956, além de traduções para várias línguas, eterniza a amizade que, na vida real, uniu quatro escritores mineiros ao longo de meio século: Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Hélio Pellegrino. Os quatro "vintanistas", como os chamava carinhosamente seu mestre Mário de Andrade. No caso dos dois últimos, os laços eram ainda mais antigos, pois se conheceram nos bancos do Jardim da Infância Delfim Moreira, em Belo Horizonte. "Perdi uma grande parte de mim, e com certeza a melhor", disse Fernando Sabino ao ver decepada essa camaradagem de 60 anos.Há quem sustente que, dos quatro, Hélio "era o menos mineiro". Nada tinha, em todo caso, da proverbial contenção montanhosa — quem sabe pelo fato de ser filho e neto de italianos. "Brasileiro, mineiro, belo-horizontino, era italiano como quem mais o fosse", disse dele o historiador Francisco Iglésias, em homenagem que lhe prestou no Conselho Federal de Cultura. Ardia em Hélio Pellegrino aquela desmesura que o fascinava na figura de Noel Nutels. "Era uma personalidade solar, que irradiava de maneira incrível a inteligência e a generosidade", observa Antonio Candido, seu companheiro de Esquerda Democrática, Partido Socialista e, por fim, Partido dos Trabalhadores. "Nada de fechado nele. Tudo aberto, para deixar passar a força de vida e para receber a força da vida. Homem de justiça e de combate, ele se jogava com a intensidade da paixão, fosse raiva contra o mal, fosse a mais ruidosa alegria diante do bem.
Para Iglésias, que com ele conviveu desde a juventude, Hélio era "um homem-comício" — "um extraordinário orador, de linguagem incisiva, de forte beleza poética, imagens ousadas, de voz firme e sonora, servido por sua bela estampa". O jornalista carioca Moacir Werneck de Castro, que o conheceu mais tarde, carrega no mesmo adjetivo para qualificar Hélio Pellegrino: "Era dono de uma opulência verbal extraordinária, as palavras lhe vinham com extraordinária facilidade, num submisso tropel. Gostava de jogar com elas, de as dissecar, esbagaçar e remontar, de tirar efeitos inesperados de suas assonâncias — e dissonâncias". Não se perdia, entretanto, "no fluxo vocabular, não se deixava arrastar por ele. Guardava seguro o equilíbrio entre a forma exuberante, barroca, e o claro conteúdo do pensamento.
Tão bem dotado para a tribuna, o palanque, era fatal que Hélio Pellegrino cedo se entregasse à paixão da política embora sua mocidade transcorresse sob a repressão da ditadura do Estado Novo. Até isso parecia movê-lo. "A guerra e a política nos marcaram profundamente", disse numa entrevista. "Nossas esperanças eram centradas no pós-guerra, na vitória da justiça, da liberdade, da fraternidade".Assim, aos 20 anos, fundou em Belo Horizonte uma Liga Intelectual AntiFascista. Juntou-se, por essa época, ao grupo que iria editar na capital mineira um panfleto clandestino, Liberdade (nome proposto, a pedido de Hélio, pelo escritor Georges Bernanos, que vivia então em Minas). Era impresso numa velha máquina temerariamente instalada atrás do prédio da Secretaria da Segurança Pública. A publicação, em 1945, ano da redemocratização, ganhou existência legal e sobreviveu por alguns meses, como jornal diário. "Passávamos o dia inteiro de cuecas imprimindo o jornalzinho", contava Hélio Pellegrino, que assinava com o pseudônimo Mário Sobral (tomado de empréstimo a Mário de Andrade) uma crônica com muita gozação em cima dós políticos que apoiavam o governo.Deposto Vargas, Hélio embarcou com entusiasmo na recém-criada União Democrática Nacional (UDN), que ainda não adquirira sua fisionomia conservadora. Era estuário natural da gente de esquerda que não fechava com o Partidão. Mais exatamente, na ala da UDN que ficou conhecida como Esquerda Democrática. Foi por essa facção que Hélio, ainda estudante, aos 21 anos, saiu candidato a uma cadeira de deputado federal na Constituinte de 1946. "Ele fez uma campanha curtíssima, só quinze dias, e por pouco não se elegeu", lembra sua viúva, a psicóloga Maria Urbana Pentagna Guimarães Pellegrino, com quem teve seus sete filhos (nos últimos 27 meses, vivia com a escritora gaúcha Lya Luft; costumava dizer que "o casamento feliz é uma penitenciária de cinco estrelas").Da Esquerda Democrática, Hélio saltou para o pequeno e aguerrido Partido Socialista Brasileiro, o PSB, do qual viria a ser uma das figuras principais em Minas. "Foi uma experiência tumultuada", rememora o escritor Marco Aurélio de Moura Matos, que foi presidente da seção mineira do partido. "A direção nacional não nos entendia, era muito acadêmica, tinha até um certo ranço stalinista". Do outro lado, Hélio e seus companheiros sofriam ataques do Partidão, que os acusava de trotskismo. "O que éramos mesmo é anti-stalinistas", precisa outro antigo dirigente do PSB de Minas, o jornalista José Maria Rabêlo, hoje presidente da seção estadual do PDT (Partido Democrático Trabalhista). "Nós acreditávamos que a revolução não podia ser feita para implantar outro totalitarismo". Rabêlo se recorda de Hélio Pellegrino "menos como um construtor de partido do que como um teórico brilhante". O que não o impedia de sair às ruas para liderar, por exemplo, duas greves históricas, dos bancários e dos condutores de bonde. Participou também de um esforço pioneiro para organizar a população de periferia, na favela conhecida como Vila dos Marmiteiros. Já formado em medicina, Hélio ligou seu nome a uma ruidosa campanha para expulsar o então governador Juscelino Kubitschek que era urologista — da Associação Médica de Minas Gerais. Juscelino havia negado aumento de ordenado e melhores condições de trabalho para os médicos do serviço público estadual. "Conseguimos expulsar o homem", conta o radiologista Eloy Lima, outro líder do movimento.
Nessa época, Hélio já havia escolhido a psiquiatria, a partir de um episódio decisivo, que relataria anos mais tarde num belo artigo, "Minha vida com os neuróticos". Durante uma aula de fisiologia nervosa, no segundo ano do curso, o professor ilustrava, na pessoa de um velho marinheiro, a doença chamada tabes dorsal. Sentindo-se reduzido a objeto, a coisa, no centro do anfiteatro repleto de estudantes, o homem, de repente, urinou na roupa — e, vexado, não pôde conter também as lágrimas. "Meu colega Eloy Lima percebeu juntamente comigo o acontecimento espantoso, e fomos três a chorar", escreve Hélio em seu artigo. "O choro do velho, seu desamparo, sua figura engrouvinhada sobre a qual parecia ter-se abatido todo o inverno do mundo, tudo me surgiu de repente como um tema de meditação, a partir de cuja importância poderia eu, quem sabe, encontrar caminho. A meus olhos, a tabes dorsal integrou-se numa pessoa humana visada como um todo. Esta totalidade única e indissolúvel deveria tornar-se objeto de ciência.
Foi em busca dessa trilha que Hélio, formado em 1947, enveredou pela psiquiatria, para desaguar em seguida na psicanálise. Não é verídica a história, integrante de seu copioso folclore, segundo a qual ele teria colocado à porta de seu primeiro consultório uma tabuleta dizendo que "só um louco procura o psicanalista Hélio Pellegrino".(A frase tem toda cara de Otto Lara Resende", desconfia Marco Aurélio de Moura Matos). Mas poderia perfeitamente ser de Hélio Pellegrino, um homem que nunca perdeu a capacidade de rir e de brincar. "As pessoas graves, sérias, compostas, morrem ainda em vida, e se tornam o busto de si mesmas", advertia. Sabia como poucos manejar a arma do humor. Numa passeata, por exemplo, no centro do Rio de Janeiro, nos anos 60, os manifestantes foram subitamente surpreendidos pela entrada em cena do brucutu, o assustador veículo que a polícia usa para dispersar multidões com jatos de água. Mas das mangueiras da fera, naquele dia, não saiu mais que um ralo fio de água. "Pessoal, o brucutu brochou!", pôs-se a berrar Hélio Pellegrino, provocando gargalhadas e desmoralizando a repressão.Em outra ocasião, lembra Moacir Werneck de Castro, envolveu-se num incidente de trânsito; quando a pessoa com quem discutia informou que era uma alta patente militar, Hélio bateu de joelhos no asfalto e clamou, com as mãos postas: "Um marechal! Meu Deus, eu não mereço tanto!" Algumas de suas brincadeiras entravam na conta de um lirismo temperado pelo anarquismo — ou vice-versa. Foi assim em São Paulo, no ano de 1945, quando tomou nos braços a figura miúda de Monteiro Lobato e disparou com ela pela avenida São João, conta o poeta Paulo Mendes Campos: "Lobato, possesso, bradava 'pusilânime!', e o nosso amigo tentava explicar-lhe que estava apenas realizando uma complicada aspiração de infância: carregar no colo o mágico de seu mundo infantil.
Seu amor pela brincadeira, no entanto, nunca impediu que Hélio Pellegrino encarasse com exemplar seriedade as tarefas, profissionais ou não, que tinha pela frente. Solicitado por todos os lados, raramente se recusava a prestar os serviços que lhe pediam — escrever um artigo, redigir um manifesto, participar de um debate. Nos últimos anos, entre inúmeros compromissos que aceitou, fez parte da Comissão Teotônio Vilela, por melhores condições carcerárias, e do grupo Tortura Nunca Mais. Tinha prodigiosa capacidade de trabalho e passava mais de dez horas por dia no consultório — "puxando minha carroça", como dizia. Como militante, foi pouco típico e não raro dissentiu. Levado ao PT pela mão do crítico e teórico de arte Mário Pedrosa, Hélio dizia que pela classe trabalhadora era capaz de tudo, até de agüentar reuniões muito compridas. Não obstante, era o que acabava fazendo com muita freqüência — como atesta o psicanalista Carlos Alberto Barreto, seu companheiro de militância no PT.
Os dois ajudaram a criar, dentro do partido, no Rio, o Núcleo (hoje Clube) Mário Pedrosa, grupo informal de intelectuais e artistas que se reúnem toda sexta-feira em casa de Barreto para discussões políticas.Ali se travaram debates inflamados — por exemplo, sobre se o PT devia ou não ir ao Colégio Eleitoral. Hélio, simpatizante de Tancredo Neves, mais tarde admitiu que boa parte dos atuais problemas brasileiros decorre da eleição indireta de janeiro de 1985. "Ele não tinha essa coisa da verdade absoluta", chama atenção Carlos Alberto Barreto. Era, para todos os efeitos, um homem aberto e tolerante — a tal ponto que sua flexibilidade por vezes deixava desconcertados os próprios amigos. Uma boa ilustração disso foi o episódio de sua prisão, em 1969. Durante o ano anterior, de grande agitação política, Hélio escreveu artigos incandescentes no hoje desaparecido Correio da Manhã. Além disso, participou de passeatas, discursou em praça pública, integrou comissões formadas para parlamentar com as autoridades.
Mas o que de fato pesou contra o psicanalista foi a imagem que dele projetou nessa época o dramaturgo Nelson Rodrigues, adepto da ditadura. Amigo e admirador de Hélio, Nelson converteu-o num dos personagens obsessivos de suas crônicas de jornal. Hiperbólico, pintava-o ali como um líder carismático capaz de incendiar multidões com "sua voz de barítono". Os militares, parece, tomaram ao pé da letra os arroubos retóricas do cronista: no primeiro dia de vigência do AI-5, 13 de dezembro de 1968, mandaram prender o psicanalista, que passou semanas escondido antes de se apresentar aos militares, em fevereiro — sob a proteção de Nelson Rodrigues, aliás. Muitos de seus amigos, nesse momento, não entendiam por que Hélio, tendo sido levado àquela aflitiva situação por causa de Nelson, não rompia com ele. Um desses companheiros, o jornalista Zuenir Ventura, que também estava preso, conta que nem quis ser apresentado ao cronista quando este foi visitar Pellegrino no cárcere. Logo compreendeu que uma das virtudes mais invejáveis de Hélio era, exatamente, "a sua capacidade de perceber, na pessoa, todos os pedaços dela". "Com ele aprendi que você pode ser radical sem ser sectário", diz o jornalista. "Nem mesmo nos momentos em que o radicalismo fervia, em 1968, Hélio deixou de ser plural.
Nelson Rodrigues, em suas crônicas, falava de Pellegrino como "o nosso Dante". Exageros à parte, não resta dúvida de que ele foi um poeta de alta qualidade, saudado em seus começos como um dos talentos mais puros de sua geração. Tinha enorme facilidade para versejar — o professor Antonio Candido se lembra das estrofes quinhentistas ("muitas vezes obscenas") que ele produziu de improviso, em mesas de bar. Maria Urbana, sua viúva, diz que Hélio nunca deixou de fazer poesia. Mas, por alguma razão, não quis publicar, a não ser esparsamente, em jornais e revistas (em 1980, gravou alguns poemas no disco Os 4 Mineiros). Livro, mesmo, se assim se pode chamar, só o Poema de Príncipe Exilado, volume com pouco mais de vinte páginas lançado em Belo Horizonte em 1947. Recusou, certa ocasião, o oferecimento de uma editora paulista para publicar Os Melhores Poemas do Hélio Pellegrino, alegando, com graça, que os textos não incluídos passariam automaticamente a ser "os piores poemas de Hélio Pellegrino.
Como prosador, limitou-se a participar de obras coletivas, como Crise na Psicanálise, de 1982, e Os Sentido da Paixão, um dos best-sellers do ano passado, no qual assina um ensaio sobre o mito de Édipo. A explicação para a sua inapetência editorial pode estar numa confissão que fez em 1979: "Fiquei dividido entre uma identidade de escritor, que não cheguei a realizar, e a identidade de psicanalista, que eu assumo", constatou, evasivo, numa entrevista. "Talvez eu seja exigente ou vaidoso demais". Otto Lara Resende acha que a psicanálise foi, para ele, uma espécie de sucedâneo da literatura. Só recentemente, e ainda assim sem entusiasmo, Hélio concordou em trazer à tona seus baús literários. Ao morrer, preparava uma coletânea de artigos publicados na imprensa, A Burrice do Demônio, outra de textos sobre psicanálise e uma terceira de versos.Em tudo o que escreveu, poesia ou prosa, Hélio Pellegrino deixou a marca de uma inextirpável religiosidade, um cristianismo que ele, "socialista histórico, eventualmente histérico", casava bem com o marxismo. "Por mais que fizesse força, não conseguia escapar do projeto de Deus", diz Frei Betto. Hélio não brincava quando dizia que o programa do PT, para ser perfeito, só faltava incluir a ressurreição da carne — porque, explicava, "não há afirmativa mais materialista e mais revolucionária do que esta.
Duas semanas antes de morrer, num jantar em sua casa, ele surpreendeu alguns dos convidados ao pedir que Frei Betto lhe arranjasse um padre, pois queria se confessar. "Logo você, Hélio, adepto da Igreja moderna, da Teologia da Libertação?, houve quem se escandalizasse. Um dos presentes lhe perguntou se aquele desejo de se confessar não escondia o medo de morrer. "Não, com a morte eu já acertei as minhas contas", respondeu Hélio serenamente, para arrematar com bom humor: "Meu problema, agora, é com Deus — e, como mineiro, prefiro chegar a Ele através de um chefe de gabinete...
(*Humberto Werneck é editor de cultura da revista Isto É.)
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De Helio Pellegrino:
Sobre a tortura
"A utilização da tortura contra presos políticos, ou contra quem quer que seja
, constitui crime de lesa-humanidade, e nesta medida fere de morte o imenso esforço civilizatório pelo qual a raça humana, através dos tempos, busca salvar-se das trevas da barbárie (...) A tortura visa a produção diabólica de um discurso que é o avesso da liberdade. Ele vira o torturado pelo avesso, na busca de uma confissão que o destrói, envenena as fontes de sua vida carnal e de seus valores espirituais.
"A tortura — corrupção absoluta — serve ao mal e à morte. A dignidade da vida, também absoluta, exige que em nenhum momento nos esqueçamos da tortura, sua negação mais evidente.
Só a verdade liberta — diz a tradição humanística de todas as idades. Ao denunciar os torturadores, a sociedade civil busca não o revanchismo, mas a dignidade e a liberdade.
"A violência da tortura não é a violência da guerra. Esta, embora detestável, não chega a destruir o chão ético que torna possível a vida — e a morte — comunitária. Tortura é barbárie, pira e simples. (...) Na tortura o torturador desonra e destrói a condição humana e, portanto, foge da possibilidade social de anistia. Só se esquece um erro que pertença ao território humano. Um erro que destrói o fundamento da condição humana não pode não deve — ser anistiado, a não ser pela misericórdia de Deus.

Relato de uma conversa com Amílcar Lobo, em setembro de 1986:

"Por fim contou-me um episódio edificante. Tinha consultório no mesmo andar e no mesmo prédio que o Dr. Leão Cabernite, que havia sido seu analista-didata. Era o tempo da crise, e os libelos por mim escritos deveriam incomodar os burocratas da SPRJ. Um dia, encontrou o Dr. Cabernite no corredor. Começaram a conversar sobre a tempestade que sacudia a SPRJ, até que o Dr. Cabernite lhe perguntou: ‘O Lobo, você não tem algum amigo militar que possa dar una cana dura nesse Hélio Pellegrino? Esse sujeito é insuportável e anda precisando’.

Sobre a criminalidade no Brasil

"Criminalidade é efeito, é forma perversa de protesto, gerada por uma patologia social que a antecede e que é, também ela, perversa. (...) Uma crise social se torna apta a fomentar a criminalidade quando chega a lesar, por apodrecimento grave, os valores sociais capazes de promover a identificação agregadora entre os membros de uma comunidade."A crise brasileira, tal como agora a descrevemos, corresponde minuciosa e cuidadosamente ao tipo de crise capaz de produzir o sintoma da criminalidade. Assistimos, em nossa terra, provocada pelo capitalismo selvagem, uma guerra civil crônica, cuja assustadora violência nos enche de pasmo — e pânico. A criminalidade dos miseráveis, dos famintos, dos desesperados, dos revoltados, exprime uma forma perversa de protesto social, que não conduz a nada, e sem dúvida piora tudo. O delinqüente, ao cometer seu crime, não pretende nenhuma transformação da sociedade. Ao contrário, busca identificar-se imaginariamente com o seu inimigo de classe, copiando-lhe caricatamente os defeitos e deformidades.
"A direita, pelos tempos afora e nos mais variados quadrantes, é useira e vezeira em atribuir alguns de seus piores crimes aos adversários de esquerda, com objetivo de denegri-los — e persegui-los. Tenta-se armar, nesta medida, uma subversão monstruosa: a autoria e a responsabilidade do delito são transferidos, pelos delinqüentes, aos que a eles se opõem, de modo que os criminosos, botando banca de impolutos, ainda encontrem, de lambujem, razões e argumentos para desmoralizar, reprimir e, se possível, eliminar seus oponentes.(...) A guerrilha dos ricos, em nome da TFP (Tradição, Família e Propriedade) e, agora, da UDR (União Democrática Ruralista), assassinou em 1985 perto de 250 trabalhadores rurais e continua a fazê-lo. Para torpedear o Plano Cruzado, pecuaristas da mesma UDR tentaram, na Europa, pagar dez dólares por tonelada de carne não exportada para o Brasil, no sentido de forçar a alta do produto. Qual é, a respeito, a opinião do general Ivan Mendes, chefe do SNI? Nós, do PT, temos a nossa — e não a escondemos. Quem são os delinqüentes?

Sobre as diretas...

"Vão perder a guerra, sim. Mais precisamente: já perderam. O povo nas pragas assumiu, sem caminho de volta, seu protagonismo histórico. A ditadura, trespassada pelo próprio fracasso, estrebucha. Sua violência já não infunde medo ou respeito. O autoritarismo e o arbítrio não conseguem auto-sustentar-se por mais tempo. O anticomunismo, como ideologia ativa, está esgotado, inclusive nos meios militares. E a exigência de impunidade dos corruptos não é razão decente para deter a abertura, tanto mais que a imensa maioria das Forças Armadas não é corrupta. Portanto, diretas-já. É este o mínimo a que tem direito o povo brasileiro depois de tanta tormenta e tanto dano.

Sobre o governo Sarney

"...E é isto, exatamente, o que está fazendo o governo Sarney. Há uma conspiração, dentro de seus quadros, contra a reforma agrária. Querem transformá-la numa negociata sinistra, conspurcando uma bandeira manchada com o sangue de mártires, como o padre Josimo e milhares de líderes camponeses massacrados. (...) Hoje, a guerrilha dos ricos, patrocinada pela UDR e pela TFP, está impune e vitoriosa. O Estatuto da Terra, engendrado pelos próprios militares, foi jogado no lixo. O retrocesso vergonhoso nos aproxima da barbárie e do genocídio, pela violência e pela fome. ‘Estamos vivendo como nos piores tempos da ditadura’ — diz D. Ivo Lorscheider, presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Tem razão.

Sobre a Igreja e o marxismo

"Não existe, para o ser humano, espiritualidade desencarnada. Se isto fosse possível, Deus salvaria o homem por decreto, e não mandaria seu filho ao mundo para ser, entre nós, uma plena — e esplêndida — prática divina. Cristo nasceu, viveu e morreu. Ele foi o verdadeiro homem e, na ação de sê-lo, através de sua prática humana, garimpou e resgatou a luz de Deus que há no coração de todos os homens. A luz de Deus, aliás, reside não apenas no coração dos homens, mas no coração da matéria. Nesta medida o materialismo não ofende a Deus, nem o renega — necessariamente. Marx, materialista e ateu, está mais próximo da verdade de Cristo do que, por exemplo, o senhor Paulo Salim Maluf, católico praticante e confesso, mas dado a práticas perfeitamente inconfessáveis.

Sobre o PT e as eleições

"O socialismo é hoje, no Brasil, um projeto possível, em virtude da existência do PT. Não é por outra razão que se procurou, recentemente, comprometer a todo pano a figura de Lula, distorcendo e deformando, a serviço da reação contrista ou direitista, as incisivas e corajosas declarações do presidente do PT feitas à Folha de S. Paulo. Lula sabe — como sabem os marxistas e os cristãos revolucionários — que a história do Brasil e, de resto, a história do mundo, é determinada pela luta de classes. Para que haja uma democracia que mereça o seu nome é preciso pugnar por uma 'sociedade sem classes' onde não haja uma minoria opressora e uma imensa maioria oprimida e explorada. Lula sabe também que, em nosso país, a classe dominante, para manter sua hegemonia, é capaz de qualquer vileza e de qualquer violência. As eleições burguesas só são toleradas — e seus resultados mantidos — na medida em que não ameaçam tal hegemonia. Transformá-las em fetiche é cair na perversão do processo democrático, cujo estuário só pode ser o controle da economia e do poder pela classe operária.

Sobre a psicanálise

"Quando Freud desembarcou na América, em 1909, para fazer uma série de conferências — hoje célebres — sobre psicanálise, virou-se para Jung, que o acompanhava, e disse: 'Venho trazer-lhes a peste'. Em verdade, e num certo sentido, a psicanálise é a peste; ou melhor, ela representa a antiutopia mais radical até hoje concebida pelo espírito humano, chegando mesmo a constituir-se como uma utopia às avessas. A psicanálise pretende curar o ser humano de suas ilusões. Ela não acredita na bondade fundamental do homem, nem parte do princípio de que o processo civilizatório é uma rampa ascendente, de sucessivas vitórias, que chegarão necessariamente à plenitude do amor de todos por todos. A luta entre Eros e Thanatos — vida e morte — se decide dentro de nós, a cada instante. Por nascermos prematurados, incompletos, sem equipamento instintivo capaz de nos costurar com solidez ao mundo, sofremos a permanente saudade de ser pedra, a nostalgia de um sono sem retomo, regido por estatuto que nos transcenda e que não possamos desobedecer ou transgredir."O ser humano é ruptura com a natureza e a ordem cósmica, salto para a cultura, a linguagem e a lei, por cujo intermédio tenta assumir o rombo de indeterminação e liberdade que constitui o seu centro. A psicanálise é a ciência desse salto e do processo pelo qual gradativamente, nos tornamos humanos, através de dolorosas lutas e renúncias.

Sobre a morte

"Nesse campo de paradoxos acelerados, podemos dizer que o suicida — e também o homicida — tem horror à morte e quer matá-la em si mesmo e no outro. Morrer é coisa de vivos — não de mortos. Morro enquanto vivo e, ao morrer, perco a vida e a morte, para entrar noutro reino. Luz e sombra, escuridão e rutilância dão-se sempre as mãos na eterna passagem das coisas, e no eterno retorno de tudo.


(Seleção de textos por Maria Rita Kehl e Patrícia Costa)--- ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Junto com o poema de Hélio Pellegrino, abaixo publicado, veio um bilhete em que Humberto Werneck revela: "... ele dizia que escrevê-lo foi sua primeira reação diante do golpe de 64".

A CÓLERA-ESPERANÇA

Atiro-a contra as quinas erguidas desta madrugada, contra estes edifícios enormes, parados contra o cinza do céu sujo como o sabão que lava o piso dos botequins ao fim da noite.


Atiro-a contra o cansaço do mundo, contra o meu próprio e inenarrável cansaço, atiro-a em nome da utopia que é minha, a tua, a nossa utopia, atiro-a com raiva, sem estratégia, sem prudência, como uma hemorragia que se esvai e tinge a calçada com o esguicho de seu incêndio rubro.


Atiro-a para nada, para o nenhum resultado do grito que precede o baque do corpo atropelado na rua, atiro-a no ar do mar, na curva corrosiva do azul, à porta dos orfanatos e prostíbulos, atiro-a ao chão, como bile sanguinolenta que escorre, como quem cospe um dente arrancado por um murro na boca.


Mas atiro-a, flecha turva, esperança e nojo, vida e cólera, atiro-a com este punho fechado, com esta sede e esta fome, atiro-a com a funda mais funda do meu sonho mais profundo, atiro-a contra argentários e fundiários, opressores e ditadores, atiro-a em meu nome e em nome dos que ainda não têm nome, e em nome dos que em dores e cólicas acordam para o seu nome, e ao rés do chão, em pleno pó, o desentranham.


Hélio Pellegrino, abril, 1964



LIVRO ESCOLHIDO - EDITORA PLANETA

LUCIDEZ EMBRIAGADA (L!)
Em 2004, Hélio completaria 80 anos e a data é marcada por dois lançamentos: Arquivinho Hélio Pellegrino (Bem-Te-Vi) e Lucidez embriagada (Planeta), que trazem textos inéditos e outros publicados na imprensa que, até então, permaneciam nos acervos da Casa de Rui Barbosa (Ministério da Cultura, no Rio de Janeiro) - onde haviam sido depositados pelo psicanalista Pedro Pellegrino, filho de Hélio -, e de Otto Lara Resende no Instituto Moreira Salles, em São Paulo.
Assim como muitos leitores de sua idade, Antonia Pellegrino, 24 anos, desconhecia esse material. Em janeiro de 2003, decidiu pesquisar os acervos e passou cerca de um ano lendo e relendo o avô. A partir deste trabalho, organizou Lucidez embriagada.
- Em vários momentos, reconheci nas palavras dele coisas fundamentais da minha educação e que moldaram a minha personalidade, o meu jeito de pensar o mundo, de me colocar nele. Coisas que eu não sabia que tinham sido passadas de pai pra filho, e daí pra mim - conta Antonia, cujos gestos largos com as mãos enquanto fala não negam sua origem.
De acordo com Antonia, o critério de seleção dos textos foi pensado a partir dos temas mais recorrentes. A divisão insinua um encadeamento de questões primordiais para Hélio Pellegrino: o primeiro capítulo, Hélio, inclui uma entrevista concedida à escritora Clarice Lispector e um ensaio sobre si mesmo. Apesar de as três partes do livro contarem com bilhetes, cartas e poemas, esta é a mais autobiográfica. No segundo capítulo, Outro, artigos sobre Nelson Rodrigues, Mário de Andrade, Che Guevara e Alceu Amoroso Lima. Fala também de sua analista, Iracy Doyle, e de Lacan. Encontro é a terceira parte, em que Hélio discute política e joga sua eloqüência contra a ditadura; acabaria preso após o AI-5 como líder comunista, dividindo cela com o jornalista Zuenir Ventura, que assina a orelha do livro. Trata de psicanálise e das possibilidades do que considerava o principal trabalho do ''homem que merece seu nome'': o encontro com o outro.

CASTORIADIS, CORNELIUS


CORNELIUS CASTORIADIS



Foi um dos maiores expoentes da filosofia francesa do século XX. Autor de inúmeras obras de filosofia e, em especial, de filosofia política. Cornelius Castoriadis é considerado um filósofo da autonomia. Dedicou-se também à teoria psicanalítica. Foi no seio do marxismo que se formou Cornelius Castoriadis, um dos críticos mais ácidos das burocracias comunistas e um dos poucos pensadores de formação marxista que foi capaz de demonstrar de forma clara os limites que se colocavam contemporaneamente às teorias desenvolvidas por Karl Marx no século XIX. Nascido em Constantinopola, de família grega, em 1922, Castoriadis aderiu, durante a ocupação nazi da Grécia ao Partido Comunista, mas rapidamente afastou-se por divergências com a política do partido e principalmente com os métodos adotados para abafar todas as críticas e debates internos. Naquela época, tal como outros dissidentes do marxismo, aderiu ao trotskismo, idealizado como uma corrente marxista anti-burocrática e anti-estalinista. Nas suas palavras conseguiu sobreviver à dupla perseguição da Gestapo e do GPU local, ou seja à repressão nazi e estalinista, que assassinaram inúmeros militantes revolucionários na Grécia Viveu em França desde 1945. Co-fundador do grupo e da revista Socialisme ou Barbarie, foi seu animador desde o início até ao fim (1949-1965), tendo sido autor dos principais textos que lhe fixaram as ideias e a sua orientação. Dentre sua obra, destacam-se, para além de A Ascensão da Insignificância, L’Institution Imaginaire de la Société (1975), Capitalisme Moderne et Révolution (1979) e La Société Bureaucratique (1990). Cornelius Castoriadis morreu em Paris em Dezembro de 1997.


LIVROS ESCOLHIDOS



1) A INSTITUIÇÃO IMAGINÁRIA DA SOCIEDADE - ( L! )
EDIT. PAZ E TERRA

Autêntico produto da sólida reflexão de um dos pensadores atuais melhor instrumentado, esta obra não tem nada a ver com moda ou com qualquer espécie de misologia. Privilegiar a imaginação e o imaginário é propor, na perspectiva de Castoriadis, o despertar de um sono dogmático, o da ontologia "identitária" da qual nem o próprio Marx escaparia e para o qual o ser teria sempre o sentido de ser determinado. Privilegiando o determinado, o acabado, tal ontologia petrificaria a realidade histórico social, mascarando-a na sua dimensão de criação continuada.


2) AS ENCRUZILHADAS DO LABIRINTO - VOL. 1 ( L! ) -
EDIT. PAZ E TERRA


Os ensaios aqui reunidos tratam de temas aparentemente distantes: a psicanálise, a linguagem, a epistemologia das ciências, a técnica, a economia política. No entanto, uma mesma preocupação os une profundamente. Trata-se de destruir uma persistente pretensão à cientificidade, último mito das velhas opressões que permanece. Encruzilhadas do labirinto : não estamos totalmente perdidos e não encontramos nenhum minotauro que não deva sua força a nossos fantasmas.

3) AS ENCRUZILHADAS DO LABIRINTO – VOL.2 ( L! )
EDIT. PAZ E TERRA


Análise de conjuntura e da filosofia social. Neste conjunto de ensaios, Castoriadis expõe suas concepções políticas, analisa a evolução da União Soviética - antevendo com lucidez os impasses da Glasnost e da Perestroika - o conflito na comunidade internacional, a democracia e o conhecimento. É um livro essencial para todos aqueles que acreditam numa crítica sem limites da atualidade, sem perder a esperança na transformação.

4) AS ENCRUZILHADAS DO LABIRINTO – VOL.3 ( L! )
EDIT. PAZ E TERRA


Para Castoriadis o mundo está fragmentado, mas não cai aos pedaços: é portanto preciso refletir. Permeando este lúcido painel dos tempos atuais, encontram-se o questionamento da própria modernidade e a valorização da função crítica, sem limites, às instituições existentes. Aos que insistem na proclamação do fim da filosofia, Castoriadis lembra que o pensamento reflexivo e a democracia nasceram juntos, graças à atividade humana, e dela dependem para continuar a existir.

5) SUJEITO E VERDADE NO MUNDO SOCIAL-HISTÓRICO -
EDIT. CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA
(L!)

Reúne parte dos seminários do filósofo e pensador grego Cornelius Castoriadis, um dos maiores expoentes da filosofia francesa do século XX, na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) no ano letivo de 1986-1987. Neles, Castoriadis examina duas questões que considera indissociáveis: qual a situação do sujeito hoje em dia? E em que medida existe criação social-histórica da verdade? SUJEITO E VERDADE NO MUNDO SOCIAL-HISTÓRICO é o testemunho de um pensamento original, primeiro volume daquele que seria o grande projeto do autor, mas que ele próprio não conseguiu finalizar.

ARRIAGA, GUILLERMO

GULLERMO ARRIAGA

Nascido na Cidade do México em 1958, Guillermo Arriaga licenciou-se em Ciências da Comunicação e em História. É romancista, produtor, diretor e roteirista de cinema. Além de Um doce aroma de morte Guillermo Arriaga escreveu outros dois romances: O búfalo da noite e Esquadrão Guilhotina e assim como o livro de contos Retorno 201. Guillermo é também premiado roteirista dos filmes Amores Brutos, 21 Gramas e Babel, pelo qual concorreu ao Oscar de melhor roteiro original em 2007.


LIVRO ESCOLHIDO - EDITORA GRYPHUS
UM DOCE AROMA DE MORTE

Certa manhã, bem cedo, Ramón descobre o cadáver de Adela num campo de cereais perto de Loma Grande. O rapaz só a vira de relance, em poucas ocasiões, mas, no mesmo instante em que ele cobre com sua camisa o corpo nu da morta, o boato de que Adela era sua namorada começa a se espalhar. A partir desse momento, os fatos se desencadeiam irremediavelmente e Ramón se vê obrigado a vingar a morte da jovem. Seu coração o obriga a agir; seu coração e um povoado inteiro, que, com rumores que circulam e que todos respiram, se transforma em protagonista do romance, em criador de uma ofensa e de uma inevitável vingança. "Um Doce Aroma de Morte" é um romance fascinante, no qual a paixão e o orgulho ditam cada uma das decisões dos personagens, a vingança se transforma em destino e a verdade se mostra em sua faceta mais ambígua e demolidora.

SCHNITZLER, ARTHUR



ARTHUR SCHNITZLER



Arthur Schnitzler nasceu em 1862, em Viena (Áustria), filho de um famoso médico. Cresce em um ambiente em que se cultivava poesia, pintura e literatura; seu pai recebia em casa importantes personagens da cidade. Começa a carreira literária aos 18 anos, com a publicação de A Canção de Amor da Bailarina. Forma-se em medicina, em 1885, pela Universidade de Viena. Nos três anos seguintes foi assistente de um cirurgião. Interessa-se pelo estudo da psiquiatria, participando de congressos científicos em vários países. Exerce a profissão até 1894, quando decide dedicar-se à literatura. Como escritor, fica conhecido com a publicação de Anatol (1893) e Ronda (1897), peças de teatro que descrevem a atmosfera de erotismo e melancolia da Viena do fim-de-século - e causaram escândalo quando encenadas. Como escritor e também como psicólogo, Schnitzler antecipou idéias do criador da psicanálise, Sigmund Freud. O Caminho Solitário (1908) trata do anti-semitismo da época, mesmo tema de sua tragédia Professor Bernhardt (1912). Autor de muitos outros livros, entre os quais O Retorno de Casanova (1918), Senhorita Else (1924) e Breve Romance de Sonho (1926), Arthur Schnitzler morreu em Viena, em 1931.

LIVRO ESCOLHIDO - EDITORA RECORD

CRÔNICA DE UMA VIDA DE MULHER (1928)
(Por Noemi Moritz Kon)
Numa carta datada de 14 de maio de 1922, Sigmund Freud faz — segundo suas próprias palavras — uma “confissão”. Já consagrado como criador da psicanálise e dizendo-se próximo do “fim da vida”, o médico vienense afirma ao destinatário que por muitos anos o havia evitado, pois o tomava, com admiração e temor, como seu “duplo”. Alguém que, como ele, era “um explorador das profundezas”, que apreendia as “verdades do inconsciente” e desmontava “as convenções sociais”. “Sempre que me deixo absorver profundamente por suas belas criações”, escreve Freud ao seu interlocutor, “parece-me encontrar, sob a superfície poética, as mesmas suposições antecipadas, os interesses e conclusões que reconheço como meus próprios.” E concluía: “Ficou-me a impressão de que o senhor sabe por intuição — realmente, a partir de uma fina auto-observação — tudo que tenho descoberto em outras pessoas por meio de laborioso trabalho”.Quem poderia ser esse a quem Freud se ligava por “uma estranha familiaridade”, alguém a quem se equiparava no trabalho monumental de construir a psicanálise e na escuta do discurso das mulheres e da histeria? Um discurso que, sistematizado em sua obra, estabeleceu o papel decisivo do desejo sexual nas ações humanas e permitiu a irrupção no pensamento ocidental das idéias de inconsciente e do homem dividido, cruciais para as décadas que viriam. O “duplo” assim declarado por Freud chamava-se Arthur Schnitzler (1862-1931). Conhecido como doctor poe­ta, o dramaturgo, contista, ensaí­s­ta, novelista e romancista foi um dos poucos escritores da Viena fin-de-siècle que adquiriu importância duradoura. Neste mês, sai no Brasil — pela primeira vez — o romance Crônica de uma Vida de Mulher, um dos livros de Schnitzler que mostram a proximidade de seus temas com os de Freud.Em parte, essa proximidade pode ser explicada pela origem de ambos — os dois eram judeus destacados da burguesia da Viena da virada de século, centro do Império Austro-Húngaro, cuja prosperidade e vigor cultural marcariam profundamente o pensamento ocidental nas décadas subseqüentes. Enquanto Freud era filho do pequeno comerciante Jacob Freud, Schnitzler provinha de uma família de médicos da alta burguesia liberal. Seu pai, Johann Schnitzler, era reconhecido por seu trabalho em consultório particular, como editor do Jornal Médico de Viena e por seu cargo de direção na Policlínica da cidade. Nesse meio, Schnitzler cresce entre apreciadores das artes e gente do teatro, recebendo sólida instrução em música e línguas estrangeiras. Precoce, aos 18 anos já tem 23 dramas acabados e 13 iniciados.
“NÃO SE PODE SER PLENO POETA E PLENO MÉDICO AO MESMO TEMPO” (Schnitzler, numa anotação no diário, em 1880)
Apesar de suas reconhecidas qualidades artísticas, Schnitzler cede à pressão paterna e se decide pela profissão de médico. Um ano depois de começar os estudos, em 15 de maio de 1880, descre­ve em seu diário o dilema que vive: “Posso medi­tar o quanto quiser sobre a íntima ligação entre medicina e poesia, e, não obstante, permanece verdade que não se pode ser pleno poeta e pleno médico ao mesmo tempo. Jogado para lá e para cá entre ciência e arte, não entrego meu pleno eu a nenhuma das duas e me atrapalho pela poesia no trabalho e pelo trabalho na poesia”. Ainda assim, Schnitzler mantém as tradições familiares. Recebe seu título de doutor, especializa-se em laringologia e, em 1886, faz seu estágio médico — como Freud — na clínica de Theodor Meynert, renomado psiquiatra que trabalha experimentalmente com as técnicas de hipnose e sugestão.
Freud e Schnitzler poderiam ter seguido a mesma carreira. Ironicamente, o mesmo evento — a morte de seus pais — os levou a caminhos opostos. Com a morte de Johann, em 1893, Schnitzler se afastou da medicina para tomar em definitivo o caminho da literatura; já a morte de Jacob, em 1896, foi a oportunidade para que Freud criasse sua grande obra, A Interpretação dos Sonhos (1900). Nela, foram construídos, a despeito do repúdio da intelligentsia médica e de uma sociedade de inclinações anti-semitas, os alicerces de sua nova ciência: um aparelho psíquico inédito e com dinâmica própria, no qual surgiam figuras conceituais tais como o inconsciente, o recalque e a sexualidade infantil.
Cada um a seu modo, os dois denunciaram a hipocrisia de sua sociedade, a falsa harmonia de um império, o Austro-Húngaro, assolado por diferenças sociais e nacionais — tensões que resultariam, no fim da Primeira Guerra Mundial, na desintegração do país. Para ambos, a espessura do social é diminuta ante a força dos impulsos sexuais e do determinismo psíquico calcado na polaridade amor e morte. O jogo político é neutralizado, sendo reduzido a categorias psicológicas. Tanto na obra de Freud como na de Schnitzler, o tom é de ceticismo. Ceticismo com relação a uma sociedade que se desarranja e busca escamotear sua face real. Ceticismo quanto às capacidades humanas de dar conta de seus problemas pela via da razão e da moral.Assim como a de Freud, também a obra de Schnitzler provoca escândalo. Pois, à diferença da maior parte da literatura austríaca da época, que ressaltava a suposta harmonia do império comandado pela dinastia dos Habsburgo, Schnitzler evidencia e combate a hipocrisia da sociedade decadente. É contra o mito habsbúrgico que se manifesta Schnitzler — mito que, como diz o crítico italiano Claudio Magris, “não é um simples processo de transfiguração do real, próprio de toda atividade poética, mas é a completa substituição de uma realidade histórico-social por uma outra fictícia e ilusória, é a sublimação de uma sociedade concreta por um pitoresco, seguro e ordenado mundo de fábula”.Schnitzler abordará, em suas obras, homens e mulheres em situações de desespero pela ruína financeira ou familiar, pelo jogo, pelo endividamento ou, ainda, pelo incesto, adultério e abandono, mas que ainda assim se mantêm fiéis aos códigos consagrados de aparência social. Exibe com crueza os desejos e a repressão na mulher e as relações de fachada dos “bons casamentos”. Evidencia também a hipocrisia dos princípios religiosos e expõe os sentimentos anti-semitas da sociedade vienense.
“AMBOS, O POETA E o PSICANALISTA,OLHAMOS ATRAVÉS DA JANELA DA ALMA”(Schnitzler, numa entrevista em 1927)
Com Freud, Schnitzler compartilhará a idéia de que a verdadeira motivação humana são os desejos se­xuais, desejos capazes de destruir todas as barreiras sociais e morais. É assim com sua Senhorita Else (1924), que, por meio de um monólogo interior, denuncia ter sido oferecida a um lascivo barão como pagamento das dívidas de jogo do próprio pai. Ou, ainda, com o belo e próspero casal de Breve Romance de Sonho (1926), que tem sua vida totalmente transformada no momento em que Albertine expõe para o dr. Fridolin seus desejos eróticos. A história foi adaptada com sucesso para o cinema por Stanley Kubrick em De Olhos bem Fechados (1999). Em Crônica de uma Vida de Mulher (1928), Schnitzler se detém de maneira amarga na vida de desventuras de Therese Fabiani. Após a derrocada da família, motivada pela loucura do pai, ela enfrentará a sociedade corrompida e decadente da Viena daquele período. Desorientada — no sentido de ser desprovida de um norte moral —, ela pula de emprego em emprego, buscando sua redenção em um casamento que não se concretiza. Em uma ocasião, engravida de galanteador pobre. Anos mais tarde, ela será morta pelo próprio filho, um ilegítimo como muitos daquele tempo.“Schnitzler”, escreve o estudioso austríaco Wolfgang Bader, “sempre atravessa os limites do que é meramente agradável e do tabu moral, indo em direção à verdade não expressa. O que irritava a mentalidade do público não era o fato de aquilo ser verdadeiro, mas tão-só ter sido mostrado e, com isso, ter acabado com o consenso da bela ilusão sobre o qual a sociedade fundava sua coesão.”A proximidade com a psicanálise se dá também no nível formal. Em 1901, em O Tenente Gustl, Schnitzler introduz o fluxo de consciência na narrativa de língua alemã, o que, na visão do crítico tcheco J. P. Stern, seria “o correspondente do mé­todo psicanalítico” na literatura germânica. Mas, mesmo nesse texto que poderia traduzir prioritariamente uma crítica contundente às instituições sociais, Schnitzler se atém aos conflitos internos da personagem, dando assim a entender que, de seu ponto de vista, o social parece ter pouca importância diante da intensidade dos conflitos internos.Esse percurso foi acompanhado à distância por Freud. Ao longo de suas trajetórias, os dois médicos — o cientista e o poeta — pouco tiveram contato. À “confissão” feita por Freud seguiram apenas alguns breves encontros. No mais, instalou-se o silêncio, apenas adornado por alguns bilhetes, cartões de visita e troca de cumprimentos. Na referida carta de 1922 a Schnitzler, Freud se recrimina, pois “durante todos esses anos nunca procurei sua companhia e usufruí uma conversa com o senhor”. Freud acreditava, de fato, que o escritor havia se aproximado por demais do universo próprio à psicanálise, mas por meios muito diversos. E isso o incomodava. Compreende-se, então, que o receio de uma maior intimidade com o poeta por parte do médico denuncia a profunda ambigüidade, marcada pela sedução e também pelo terror, que o liga à fantasia, à imaginação, suporte maior da criação artística.Em Estudos sobre a Histeria (1893-1895), Freud escreve com certo desconforto: “A mim causa singular impressão comprovar que minhas histórias clínicas carecem, por assim dizer, do severo selo da ciência, e que apresentam mais um caráter literário. Mas consolo-me pensando que este resultado depende inteiramente da natureza do objeto, e não de minhas preferências pessoais. O diagnóstico local e as reações elétricas não têm eficácia alguma na histeria, enquanto uma exposição detalhada dos processos psíquicos, tal como estamos habituados a encontrar na literatura, me permite chegar, por meio de um número limitado de fórmulas psicológicas, a um certo conhecimento da origem de uma histeria”.Assim, da parte de Freud, assumir diante de um outro a estranha familiaridade que o uniria a seu duplo-Schnitzler traduz um intenso trabalho de superação da resistência diante da percepção da atividade da fantasia em sua própria disciplina. Freud preferiria abrigar-se sob o severo selo da ciência, distanciando-se do solo incerto sobre o qual habita o criador. Já Schnitzler parece ter superado seu dilema juvenil, assumindo sem medo a via artística. Em uma entrevista, em 1927, o escritor austríaco faz uma alusão à carta de Freud transcrita acima: “Por algum aspecto eu me constituo no ‘duplo’ do professor Freud. Ele me definiu certa vez como seu gêmeo psíquico. Na literatura percorro a mesma estrada sobre a qual Freud avança com uma temeridade surpreendente na ciência. Entretanto, ambos, o poe­ta e o psicanalista, olhamos através da janela da alma”.

KOHAN, MARTIN


MARTIN KOHAN

Martín Kohan nasceu em Buenos Aires, Argentina, em janeiro de 1967. Ensina Teoria Literária na Universidade de Buenos Aires e na Universidade da Patagônia. Publicou três livros de ensaio: “Imágenes de vida, relatos de muerte. Eva Perón, cuerpo y política” (1998, em colaboração com Paola Cortés Rocca); “Zona urbana. Ensayo de lectura sobre Walter Benjamin” (2004) e “Narrar a San Martín” (2005); dois livros de contos: Muero contento (1994) e Una pena extraordinaria (1998); e seis romances: La pérdida de Laura (1993), El informe (1997), Los cautivos (2000), Dos veces junio (2002), Segundos afuera (2005) y Museo de la Revolución (2006). Zona urbana foi editado na Espanha por Trotta; já Segundos afuera e Museo de la Revolución, por Mondadori. Em 2007, sob o pseudônimo Miguel Cané, ganhou o 25º Prêmio Herralde, com seu romance Ciências morales. Suas obras estão sendo publicadas em editoriais de prestígio como Einaudi na Itália, Serpent’s Tail no Reino Unido, Seuil na França e Suhrkamp, na Alemanha.
Em agosto de 2006, o autor argentino compareceu ao 7º Salão de Leitura de Belo Horizonte, Minas Gerais. Foi entrevistado por Graciela Ravetti de Gomes, PhD. em Teoria Literária pela Universidad de Valladolid, Espanha, e falou sobre seu livro “Dos Veces Junio” (Duas Vezes Junho, publicado no Brasil em 2005 pela Editora Amauta) e sua famosa frase inicial: “A partir de que idade se pode começar a torturar uma criança?” Contou sobre suas experiências durante a ditadura argentina, quando tinha apenas nove anos. Falou também sobre o papel do futebol na propagação de idéias nacionalistas que serviam à ditadura: muitos argentinos juram que viram a Copa de 78 em cores, embora não tenha sido transmitida em cores para o país. Na obra, aparecem duas derrotas argentinas: nas copas de 78 e 82. Segundo Kohan, escrever sobre as derrotas é uma maneira de levantar a memória.


LIVRO ESCOLHIDO - COMAPNHIA DAS LETRAS


CIÊNCIAS MORAIS


"Ciências Morais", novo romance do argentino Martin Kohan, agora lançado no Brasil, se passa no período final da ditadura argentina, quando a aventura insana da Guerra das Malvinas mobilizava o país, em meados de 1982. Maria Teresa é inspetora no super tradicional Colégio Nacional de Buenos Aires, referência cívica e dos "bons costumes". Tímida, sem atrativos e com pouca personalidade, ela se guia pelo extremo rigor das regras do colégio. Para ela, é Deus no céu e o diretor na Terra. Sua mãe, a própria imagem da alienação, vê a televisão no modo "mudo", e espera os postais lacônicos do filho Francisco, enviado para a Guerra das Malvinas.Bisugatto, o chefe dos inspetores, é um sujeito decididamente desagradável. No passado recente ele foi responsável por fazer listas com nomes de alunos do colégio e entregá-las às autoridades militares. Um delator, com todas as letras. Mas, aos olhos admiradores de Maria Teresa, um defensor dos interesses magnos da Pátria.Todo excesso de zelo esconde um desejo inconfessável, e é o que mostra Kohan em sua alegoria, colocando cada gesto de Maria Teresa nas lâminas de seu microscópio literário. Ansiosa por fazer-se notar positivamente pelo chefe e seu bigode severo, a pobre decide esconder-se no banheiro masculino para ver se flagra algum comportamento impróprio. Sua obsessão é o aluno Baragli, que ela intui ser um "subversivo" pelo modo ousado como apóia a ponta dos dedos no ombro da colega da frente na hora da fila, ou pelo jeito provocante com que mostra a perna para provar que está com as meias corretas. Tem certeza de que ele se aproveita das idas ao banheiro para fumar escondido. Chega a descobrir qual loção masculina ele usa, para melhor identificá-lo quando fechada no cubículo, com as pernas encolhidas e as costas apoiadas nos frios ladrilhos.
O livro é todo construído com o olhar isento da terceira pessoa, como se Kohan tentasse, por meio desse expediente, exorcizar o espírito opressor da ditadura, que aqui aparece na sua forma mais comezinha. Mas é tão grande o envolvimento do leitor com a intimidade da personagem que é como se o romance estivesse narrado em primeira pessoa. Perto do final, a leitura ganha densidade psicológica e suspense com uma violenta reviravolta. Kohan consegue, com os poucos elementos de que dispõe, a intensidade de que é feita toda grande obra de literatura. "Ciências Morais" é seu mais recente romance. Recebeu no ano passado o prestigiado prêmio Herralde da Espanha. Para se ter uma idéia da importância do prêmio, entre os últimos vencedores estão o também argentino Alan Pauls, com "O Passado" (em 2003), o espanhol Enrique Vila-Matas, com "O Mal de Montano" (em 2002), e o chileno Roberto Bolaño, com "Os Detetives Selvagens" (em 1998), todos do primeiríssimo time.

ZIZEK, SLAVOJ

SLAVOJ ZIZEK


Nascido na Eslovénia em 1949, quando a bela cidade de Ljubljana ainda era capital de uma das repúblicas jugoslavas, Slavoj Žižek foi-se tornando, ao longo da última década, um dos nomes mais em foco no circuito académico internacional. Partindo tanto de Karl Marx como de Jacques Lacan, cujos dificílimos conceitos psicanalíticos estudou em profundidade, Žižek cruza, de forma surpreendente, os mais áridos termos filosóficos com referências concretas da cultura popular – dos filmes comerciais de Hollywood ao mundo da publicidade. Num dos capítulos finais de Elogio da Intolerância, por exemplo, ao discutir o impacto do Viagra na libido masculina, fala da “erecção” recorrendo a Santo Agostinho e à crítica da mercantilização em Adorno... Além disso, a voraz necessidade de ler os sinais do mundo em que vivemos levam-no a integrar nas suas obras, quase em tempo real, uma multiplicidade de acontecimentos em curso – seja o conflito no Médio Oriente, o furacão Katrina, os carros incendiados na periferia parisiense ou o balanço do papado de João Paulo II (um “falhanço ético”, devido ao poder crescente concedido à Opus Dei e à incapacidade de lidar com a pedofilia no seio da Igreja). Embora mantenha o lugar no Instituto de Sociologia de Ljubljana, Žižek lecciona em várias universidades europeias e americanas. Nómada e poliglota (fala seis línguas), profere conferências em todas as latitudes, num registo caótico, a que o seu look desalinhado e mal vestido (nada de casacos ou gravatas) confere a inevitável aura de esquerdista com glamour. A principal crítica que lhe fazem é a da “inconsistência”: não raro, os seus textos contradizem-se ou refutam-se. Nada que o preocupe por aí além. Tal como Lacan, está permanentemente a “actualizar” as suas teorias. Com uma bibliografia que já vai em 50 livros (traduzidos em mais de 20 línguas), a que se juntam centenas de artigos, Žižek publicou em Fevereiro deste ano o seu opus magnum: um calhamaço de 500 páginas (The Parallax View, MIT Press) em que procura reabilitar o materialismo dialéctico.Homem prático, foi candidato (em 1990) à Presidência da Eslovénia, nas primeiras eleições livres após a dissolução da Jugoslávia. Não o escolheram por um triz.
LIVROS ESCOLHIDOS - JORGE ZAHAR EDITOR

1) ROBESPIERRE: VIRTUDE E TERROR


2) MAO: SOBRE A PRATICA E A CONTRADIÇÃO


(Artigo de Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa em Carta Capital n.506)

“Ora (direis) ouvir Mao Tsé-tung! Certo, perdeste o senso.” Mas é o que Slavoj Zizek propõe em Mao: Sobre a prática e a contradição. Também convida a escutar o mais famoso dos cortadores de cabeça em Robespierre: Virtude e terror. As duas obras aprofundam, com personagens ainda mais controvertidos, a reflexão iniciada com a reintrodução de Lenin por Zizek em Às Portas da Revolução, editado pela Boitempo em 2005. Trata-se, diz o esloveno, de fazer-lhes uma crítica implacável sem deixar de reivindicá-los para a esquerda e responsabilizar-se pelo passado que a constituiu. Nada de atribuir “maus” resultados ao traidor ou intruso que corrompeu a pureza do ensinamento original, pois este tem a necessidade inerente de ser “traído”, tirado do contexto original, lançado em um cenário estranho e assim se tornar universal. Só depois de reconhecer isso é possível diagnosticar o que, no plano abstrato, estava certo ou errado. Mao precisou trair Lenin tanto quanto este traíra Marx. Só assim poderia fazer algo tão temível: politizar e pôr em movimento centenas de milhões de trabalhadores anônimos do Terceiro Mundo, o que para o Ocidente era a “estranheza radical” asiática, o alienígena “perigo amarelo” – e com tanto vigor que o movimento continua hoje, ainda que em direção imprevista, a explosão sem precedentes do dinamismo capitalista na China. A principal traição com a qual Mao contribuiu para a filosofia marxista está, para Zizek, nas elaborações sobre a idéia da contradição. A contradição principal – a luta entre proletariado e burguesia – não se sobrepunha à que deveria ser tratada como dominante no caso concreto – por exemplo, a luta contra o imperialismo japonês, que unia chineses de todas as classes. Também, conforme a situação, o fator superestrutural, subjetivo de uma contradição era ou não mais importante que o material. Era preciso distinguir contradições “antagônicas” e “não antagônicas”. São pontos que, para Zizek, merecem consideração: insistir na centralidade da contradição principal no momento errado é “oportunismo dogmático”. Mao falhou miseravelmente em transpor a negatividade revolucionária em uma ordem nova e positiva. Segundo Zizek, a raiz do fracasso está na rejeição, ou incompreensão, da síntese dialética dos contrários, que não é simples conciliação, mas a superação dos termos da contradição. Para o líder chinês, o resultado da luta era a destruição de um lado, o que o aprisionava a uma luta infinita. Não é mera firula filosófica. Dessa perspectiva “cósmica”, Mao desprezava os custos humanos dos projetos. Nem o risco de destruição do planeta pela guerra nuclear lhe importava. Daí também a negação interminável e autodestrutiva da Revolução Cultural, reduzida, no final, a uma destruição impotente por incapacidade de gerar o novo e superar o passado.Ainda assim, o autor vê como positiva a ousadia de Mao e Robespierre e repete com este: “Cidadãos, queríeis uma revolução sem revolução?” Não há revolução que respeite as normas preexistentes. Toda explosão democrática autêntica tem uma dimensão de “terror”, a imposição brutal de uma nova ordem. Zizek chega a propor a reinvenção do terror democrático como forma de enfrentar a ameaça da catástrofe ecológica: justiça igualitária estrita (impor as mesmas normas em todo o mundo para consumo de energia per capita, sem culpar o Terceiro Mundo), terror (punição aos violadores das medidas impostas, inclusive com limitações das “liberdades”), voluntarismo (decisões coletivas contra a lógica “espontânea” do desenvolvimento capitalista) e confiança no povo (apostar que a maioria apóia as medidas severas e está pronta a controlar seu cumprimento).
Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa em Carta Capital n.506)
“Ora (direis) ouvir Mao Tsé-tung! Certo, perdeste o senso.” Mas é o que Slavoj Zizek propõe em Mao: Sobre a prática e a contradição. Também convida a escutar o mais famoso dos cortadores de cabeça em Robespierre: Virtude e terror. As duas obras aprofundam, com personagens ainda mais controvertidos, a reflexão iniciada com a reintrodução de Lenin por Zizek em Às Portas da Revolução, editado pela Boitempo em 2005. Trata-se, diz o esloveno, de fazer-lhes uma crítica implacável sem deixar de reivindicá-los para a esquerda e responsabilizar-se pelo passado que a constituiu. Nada de atribuir “maus” resultados ao traidor ou intruso que corrompeu a pureza do ensinamento original, pois este tem a necessidade inerente de ser “traído”, tirado do contexto original, lançado em um cenário estranho e assim se tornar universal. Só depois de reconhecer isso é possível diagnosticar o que, no plano abstrato, estava certo ou errado. Mao precisou trair Lenin tanto quanto este traíra Marx. Só assim poderia fazer algo tão temível: politizar e pôr em movimento centenas de milhões de trabalhadores anônimos do Terceiro Mundo, o que para o Ocidente era a “estranheza radical” asiática, o alienígena “perigo amarelo” – e com tanto vigor que o movimento continua hoje, ainda que em direção imprevista, a explosão sem precedentes do dinamismo capitalista na China. A principal traição com a qual Mao contribuiu para a filosofia marxista está, para Zizek, nas elaborações sobre a idéia da contradição. A contradição principal – a luta entre proletariado e burguesia – não se sobrepunha à que deveria ser tratada como dominante no caso concreto – por exemplo, a luta contra o imperialismo japonês, que unia chineses de todas as classes. Também, conforme a situação, o fator superestrutural, subjetivo de uma contradição era ou não mais importante que o material. Era preciso distinguir contradições “antagônicas” e “não antagônicas”. São pontos que, para Zizek, merecem consideração: insistir na centralidade da contradição principal no momento errado é “oportunismo dogmático”. Mao falhou miseravelmente em transpor a negatividade revolucionária em uma ordem nova e positiva. Segundo Zizek, a raiz do fracasso está na rejeição, ou incompreensão, da síntese dialética dos contrários, que não é simples conciliação, mas a superação dos termos da contradição. Para o líder chinês, o resultado da luta era a destruição de um lado, o que o aprisionava a uma luta infinita. Não é mera firula filosófica. Dessa perspectiva “cósmica”, Mao desprezava os custos humanos dos projetos. Nem o risco de destruição do planeta pela guerra nuclear lhe importava. Daí também a negação interminável e autodestrutiva da Revolução Cultural, reduzida, no final, a uma destruição impotente por incapacidade de gerar o novo e superar o passado.Ainda assim, o autor vê como positiva a ousadia de Mao e Robespierre e repete com este: “Cidadãos, queríeis uma revolução sem revolução?” Não há revolução que respeite as normas preexistentes. Toda explosão democrática autêntica tem uma dimensão de “terror”, a imposição brutal de uma nova ordem. Zizek chega a propor a reinvenção do terror democrático como forma de enfrentar a ameaça da catástrofe ecológica: justiça igualitária estrita (impor as mesmas normas em todo o mundo para consumo de energia per capita, sem culpar o Terceiro Mundo), terror (punição aos violadores das medidas impostas, inclusive com limitações das “liberdades”), voluntarismo (decisões coletivas contra a lógica “espontânea” do desenvolvimento capitalista) e confiança no povo (apostar que a maioria apóia as medidas severas e está pronta a controlar seu cumprimento).